Hoje em dia, me meti a chef de cozinha ate brincando um pouco com a ideia - nao fui eu que escolhi a profissao, foi a profissao que me escolheu - sempre tive um que pela cozinha e sei da onde veio a veia culinaria : Dna.Abigail foi a fonte de inspiracao com certeza.
Nao foi por acaso que hoje, eu sei e lembro dos pratos que ela tanto fazia e repetia como sendo "as especialidades" ou traduzindo as coisas que el poderia cozinhar mais rapido e melhor para alimentar a todos e ainda ter tempo de observar as panelas serem escarafunchadas por nos, os rostos, a surpresa (as vezes ate a decepcao, crianca eh um problema)e o delirio de encontrar dentro daquelas panelas pesadas e mega-usadas (com marcas carbonizadas e ferro com porosidades imensas do uso) um novo sabor, um prato daqueles que vc espera ansiosamente que alguem faca ou simplesmente o arroz que nunca estava com o fundo queimado (como sera que ela fazia ?)...
Agora eu entendo a genialidade simplista com a qual ela executava os pratos que fazia, todas as opcoes foram exploradas durante os mais de 50 anos de fogao e tenho certeza absoluta que nada do que ela aprimorou poderia ser feito melhor - abusava dos temperos comuns a mesa brasileira como cebola (amava, principalmente cortada grossamente e deixada amolecer ate ficar insipida), alho, pimentas e salsinha, muita salsinha que demorei aprender a apreciar e sempre me perguntava "porque tanta salsinha meu Deus do ceu ??" cuspia os pedacos no guardanapo sem saber (nem ter ideia, na verdade) do privilegio de se ter salsinha fresca na comida. O sal ela aprendeu a controlar depois de muita insistencia e uma nefrite incidental, minha, por sinal.
Mas ela sabia o que cada um de nos gostava mais e de vez em vez, fazia so para nos observar devorando cada pedacinho sem deixar espaco para respirar, sabia que eu adorava frango a passarinho, pelo menos e sempre me lembro de termos a mesa. Santissima senhora era.
O kibe cru, nao era apenas um kibe cru e ate hoje nao achei concorrentes para o dela; ja vinha com tudo dentro, a cebola em cubinhos, a hortela esmigalhada e ate um pouco de alho alem do tradicional trigo e nao parecia nem um pouco com os outros que vc encontra por ai, nao era necessariamente vermelho, era de um mescla de cores e temperos (a pimenta siria feita por ela inclusa) que simplesmente necessitava um fio de azeite para a perfeicao total e completa e quando sobrava um pouco para o dia seguinte (o que raramente acontecia) era ainda melhor: todos os sabores e aromas se fundiam e simplesmente era como provar um pedaco do paraiso moido...
A simplicidade de um arroz com lentilha se perdia em seus truques, ate hoje nao imagino o que iria para dentro daquela panela enorme (ela nao sabia fazer pouca comida, era uma piada secreta entre a familia ate) fazia de uma coisa tao basica um prato principal que dispensava acompanhamento (que alias nunca faltava).
A genialidade de seu bolo de fanta (isso mesmo) hoje cai em minha cabeca como uma tonelada de tijolos: em uma culinaria que hoje em dia serve pudim de pao com manteiga em restaurante cinco estrelas, o pao-de-lo encharcado em uma mistura de coco ralado, leite condensado e garrafas de fanta laranja soa simplesmente uma sacada de genio : cada pedaco era meticulosamente embrulhado e pedacos de papel aluminio separadamente o que sugeria apenas um estimulo a comer o tal bolo (na epoca) e hoje eu sei que, se deixado aberto na geladeira o tal bolo, pela natureza esponjosa do pao-de-lo principalmente, ficaria esturricado em menos de dois dias. Quer mais inventividade que isso ?
Sopas entao, eram sempre quase solidas - mas era aonde ela podia usar mais a criatividade - nunca percebi sopa sendo feita de restos naquela cozinha, sopa era um caso serio para ela e por sinal lembro-me de ser um dos pratos dos quais ela mais repetia. Mas a sopa de feijao e macarrao dela ultrapassava os limites do vulgar dos ingredientes, sempre tinha um sabor puxado para o alho igualzinho os caldinhos (caros) servidos no Piraja. Ela sabia das coisas a danada.
E tenho certeza que, se cinco chefs tentarem executar um prato que ela fazia com maestria seguindo uma receita basica e adicionando o que quer que eles quisessem, cada um iria por apenas um dos condimentos ou truques que ela usava formando cinco pratos incompletos da Dna.Abigail.
Ela tinha um ciumes mortal de sua cozinha, e cada experiencia minha ou da minha irma era vista com desconfianca e desprezo; nao por maldade, mas ela sabia que podia fazer direito e melhor e tentava nos salvar do fracasso iminente e mesmo sabendo disso, nunca interferiu em nossas tentativas culinarias. As poucas, devo acrescentar.
Receitas perdidas ? muitas. Ela levou todas com ela...
Os beijinhos e olhos-de-sogra que atraiam multidoes especialmente no Natal se foram para sempre, e o Cabrito refogado nunca mais tera o mesmo sabor com certeza (este, feito especialmente para agradar o gosto do meu irmao) e principalmente a Ceia de Natal quase toda (minha irma salvou algumas receitas) se foi para sempre como o melhor dos misterios : os nunca descobertos.
As visitas eram sempre muito interessantes para ela (aquelas que nao eram "enjoadas", palavra usada por ela para pessoas seletivas com comida) e se recusar a comer na mesa dela era bem mais que uma decepcao, ate uma afronta, um acinte por assim dizer.
mas isso nao acontecia, nossos amigos miavam, urravam na mesa ao provar a comida dela e isso valia mais que todo o dinheiro do mundo, dava para ver o rostinho dela reluzindo a cada "HMMMMM" pronunciado e a cada prato repetido, era simplesmente a gloria.
Cada vez que entrava em regime era um suplicio, ela simplesmente nao conseguia ver aonde precisava perder peso (nenhum dos doze quilos, em uma certa ocasiao) e era um suplicio para ambos - eu, nao queria fazer desfeita para ela e ela, por sua vez, nao suportava ver alguem em qualquer tipo de negacao/sacrificio fazendo uma dieta se tornar uma verdadeira prova de forca de vontade e culpa (por nao comer, essa eh nova) mas acabei abrindo a excecao aos almocos de Domingo, afinal, valia a pena.
Alias, os almocos de Domingo, de ressaca muitas vezes eram o que ha de mais tormentador na vida de um adolescente - tinha que comer porque a familia toda estava assistindo e principalmente porque se nao comesse a quantidade usual, ela iria notar e comentar. Hilario, para falar a verdade.
Saia de la entupido, verde, mas com a sensacao do dever cumprido. rs
Mas uma coisa, a principal, hoje em dia eu entendo e muito bem; e o desapontamento de ver um prato voltando para a pia pela metade quando nao quase intocado - se eu me sinto mau vendo isso no restaurante, aonde nao conheco os clientes e nao sei a razao da recusa, imagino vindo de uma pessoa que voce nutre e ama...
...nao deve ser facil.
Para ela, a comida era sinonimo de amor, e isso ela deixou bem claro ao longo dos anos - se voce se importa com alguem o suficiente para alimenta-lo, bem... ...demonstre isso com um prato bem cheio.
Isso eu aprendi. E ai de vc se estiver de regime.
Lembranças escolares
Há 14 anos
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