quarta-feira, março 30, 2005

Ainda no Tatler...

Meses haviam se passado, eu ja preparava molhos, cortava e limpava pedacos gigantescos de carne e aparentemente nao havia mais o que se aprender naquela cozinha, o menu mudou apenas para ser uma variacao das mesmas coisas do antigo (Mark eh um vagabundo de carteirinha) e eu nao aguentava mais o Steve me enchendo o saco, mas eu comecei a perceber o que estava acontecendo realmente quando passei a fazer a preparacao da area quente. Uma noite, no auge do desespero Mark berra por root veges (vegetais tuberculos, cortados em cubinhos) aparentemente Steve deu mancada, e la fui eu com minha faca de dez dolares cortar legumes - o que geralmente levava horas para aqueles dois, eu fiz em minutos - e nao estava usando as facas Victorinox, Globais da vida nas quais eles prezam como seus proprios orgaos sexuais (na verdade, ainda acho que a faca, para o chef, ainda eh um simbolo falico de poder) e agora eu entendia o porque de geralmente serem seis da noite, enquanto eu me descabelava para terminar toda preparacao das pracas de saladas e sobremesas os dois estavam em frente dos fogoes lendo jornal, batendo papo e observando os decotes, a anatomia das freguesas que passavam em frente da boqueta em direcao ao banheiro. Passei a entender a situacao : havia sido eleito o Heroi, aquele cara que nunca falta, nunca liga falando que esta de cama (a nao ser que vc tenha uma hemorragia interna, vc TEM que estar la) e nunca reclama que esta sobrecarregado, alias este e o perfil ideal de um ajudante de cozinha - mesmo que vc acorde na sarjeta com cachorros lambendo a sua cara e com uma dor de cabeca herculea, VC TEM DE ESTAR LA as nove em ponto, de uniforme limpo, barbeado e hiperativo. Nem sempre correspondi a descricao,mas estava lah, durante meses e meses e nunca dei mancada, Sarah a gerente me apelidou de "reliable Ricardo".
Na semana seguinte, estavamos la nos matando (eu, bem claro) e quando eram quatro da tarde, as pracas ainda arrasadas pelo almoco, Chegam Steve e Mark, ao passo que joguei o avental e estava batendo o ponto quando em polvorosa eles me perguntam aonde iria - como assim vc vai sair e deixar a gente na merda ? Apenas mostrei que a MINHA praca estava reabastecida e que iria tirar meu break sim, "voce quer um heroi ? o cemiterio esta cheio de herois, sao os primeiros a morrer" e fui para meu break de uma hora.
Isso mudou bastante as coisas por la.
Estava comecando a ficar viciado em Panadol, no comeco era porque tinha constantes dores-de-cabeca por falta de sono, alimentacao irregular (para quem trabalha em cozinha, um simples macarrao com molho de tomate eh uma bencao) e raros dias de folga contribuiram para me colocar na mais profunda das depressoes - chegava ao trabalho feito um zumbi, andava pela cozinha me arrastando e ferias nao eram considerada uma possibilidade, mais um sonho.
Apos mastigar a seco, mais dois Panadols, agora porque descobri que alem de amansar a dor-de-cabeca estes continham doses cavalares de cafeina descobri que o novo chef da manha havia chegado - Francis, Irlandes, oculos-fundo-de-garrafa e um sotaque gaelico incompreensivel estava prostrado em frente aos fogoes feito uma barata tonta. Nao despertou o menor interesse em minha ja abalada fe no Tatler. No inicio, claro.
FRAN.
Francis (carinhosamente apelidado de FRAN) foi jogado na cozinha sem nenhuma explicacao, sem nenhuma ideia do cardapio, sem a menor dica do vagabundo do Mark que estava agora feliz por ter se livrado de uma vez por todas do inconveniente de encontrar um day-time chef.
No inicio, achei que ele era um desses NERDS que andam por ai tentando ser simpaticos com todos, pensei em mais um idiota para aguentar toda a manha (depois da Brenda, uma vaca extremamente religiosa que deveria seguir os proprios mandamentos) e nao estava contente com mais agruras que possivelmente surgiriam, fui com cuidado, dizendo a ele o que deveria ser feito e me senti um pouco desconfortavel ao dizer a um chef experiente o que deveria fazer.
Comecamos a trabalhar juntos numa sexta, acho eu, e no sabado ele me chamava para cozinhar junto com ele, dividindo comandas e assistindo ele - achei brilhante, um sopro de vida em meio ao deserto profissional que me encontrava - mas a prova de fogo estava por vir, a apenas um dia de distancia, na forma de um dia de cafe-da-manha.
Domingo, o dia dos turistas e caipiras irem tomar seus cafes da manha fora de casa, estavamos eu e Fran, nos preparando para mais um dia de esbarroes e encontroes devido a nossa total falta de familiaridade na estreita area quente, quando as nove da manha em ponto (mal tinhamos tirado as coisas da geladeira) comandas comecam a ser cuspidas pela impressora, fato raro em qualquer dia da semana obter pedidos nos primeiros minutos de funcionamento. De repente, as nove e meia, tinhamos 14, 15 comandas dependuradas e corriamos, Fran gritava com seu sotaque gaelico "fock,fock, bastards !!" enquanto eu dividia minhas tarefas entre cozinhas, fazer as saladas e sanduiches, lavar pratos e reabastecer a area quente com bacon (que deve ser pre-cozido no forno), Hash Browns, salsichas, Cogumelos silvestres (tambem pre-cozidos no forno) e toda a parafernalia que o continental Breakfast exige. A cozinha enorme do Tatler exige pelo menos tres pessoas trabalhando, uma basicamente no fogao, outra entre abastecimento/assistencia e saladas e outra para lavar os pratos e ir buscar coisas na camara fria - eramos um exercito de dois homens, fomos levados quase as lagrimas e so conseguimos ajuda (virtualmente) quando depois de horas as duas mariquinhas admitiram para a gerente que a coisa estava desandando.
Ligaram para o Steve, o unico disponivel e ele apareceu uma hora depois (por volta das uma) totalmente chapado por resquicios das drogas da noite anterior, levava horas para lavar UMA frigideira e nossos pedidos por molhos Barnaise, bacon e afins eram apenas ruidos em sua confusa e dolorida cabeca (tanto que dispensamos ele as duas e meia) e as tres e meia da tarde, ainda tinhamos pedidos entrando e nao sabiamos o que fazer para abastecer aquele povo que nao parava de entrar no restaurante. "Motherfockers !!" gritava Fran entre um prato e outro, enquanto eu lavava os pratos correndo para reabastecer a estufa de pratos quentes.
Entre urros/berros/gritos e sussurros, foram por volta de 200 pessoas atendidas naquela manha - recorde de publico do Tatler para cafe da manha, ganhamos uma cerveja cada um da gerente (que quebrou o protocolo de alcool zero no trabalho) e as quatro da tarde estavamos no beco atras do restaurante sentados em caixas de leite encostados na parede, bebendo a cerveja e fumando avidamente os primeiros cigarros do dia. "Fomos estuprados" falei, e ele devolveu "Voce eh bom" - concordamos entre nos, e partir dai surgia o duo-dinamico das manhas.
Viramos parceiros, de trabalho, de bar e da vida - como costumo dizer, meus colegas de bar tem um problema de trabalho e com Fran nao foi diferente : saiamos para o break do dia e voltavamos levemente embriagados para trabalhar e ainda sim, trabalhavamos brilhantemente. A essa altura, ainda era Abril, Fran entrou no ritmo de Queenstown tipo, bar/pilulas/snowboard/baseado e trabalho enquanto eu procurava me focar no trabalho, mas ainda estava descontente com um monte de coisas, entendam que as pessoas que trabalham em uma cozinha estao a uns cinco niveis abaixo da humanidade e sao em suma : drogados, bebados e pessoas com passados criminosos e ate entao, era considerado como tal naquela escala, e na verdade sou um dos unicos que nao usa drogas e talvez, o unico interessado em aprender mais e mais. Fran tinha uma razao para estar la, ele era qualificado entao a satisfacao profissional estava em segundo plano - o trabalho era apenas dinheiro para esquiar e beber - para mim o buraco era mais embaixo, nao estava mais vendo razoes para estar lah, comecei a pensar em dinheiro.
Visto que Fran era qualificado, e ganhava exatamente o que considerava um salario decente para mim, apos dois meses tentava convence-lo a pedir aumento de maneira que, eu pudesse ter um aumento tambem de forma justificada (e com certeza, a direcao iria querer manter o duo-maravilha) mas Fran era muito bundao para pedir um aumento e isso encrencava meus planos tambem.
Percebi que enquanto a direcao do restaurante me visse como um brilhante drogado, bebado, oportunista de temporada, nao iria para lugar algum, queria sim, meritos e grana, ainda que fosse para ser um otimo kitchenhand, queria mais.
Ai, comecei a arquitetar minha fuga.

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande Pili, sempre com uma riqueza de detalhes, que nos faz imaginar a cena e az vezes ate ver como aconteceu.....Esse Tatler que vc fala é esse desse site: http://www.tatler.co.nz/

Se for é bem da hora.....
Abraços...
Tocha....

 
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