sábado, novembro 12, 2005

Aos sabores da vida.

Qual a maior vantagem de ser um chef ?
Apos algum tempo, se aprende a aticar o paladar, olfato e visao que se tem de ingredientes, temperos, cores e texturas do que a maioria das pessoas "civis" com costumo chamar na cozinha - a partir dai, nao so seu estomago mas seu cerebro passa a ter conexao direta com a comida, o paladar e ate pode-se imaginar como sao os paises dos quais se prova uma comida tipica, pode-se tentar descobrir se o povo eh hospitaleiro, dinamico, relax... ...pode-se dizer muito, sem uma so palavra ser proferida.
Apos anos com terror absoluto a pimenta (pimenta ardida, claro) estou encontrando perolas da cozinha internacional em lugares absolutamente obscuros e dos quais jamais entraria em nenhuma hipotese. Ricky, o supervisor da minha cozinha, virou um grande amigo - ele eh da Malasia, e tem me ensinado as saladas tipicas (que sao servidos no Fortuna, o restaurante do qual sou responsavel pelas saladas) e sobre a cozinha asiatica em geral. Apos o trabalho, saimos feito duas comadres diretamente a restaurantes asiaticos para provar o que cada pais tem de bom - um em Avondale, uma portinha com cara de pe-sujo e apenas duas mesas na cara de um balcao daqueles de emporio e um senhor com cara de poucos amigos serviu para comecar. Deixei meu anfitriao pedir e esperei pelo pior, uma catastrofe gastrica estava prestes a se seguir em minha cabeca e ja imaginava que meios curiosos e nada agradaveis meu estomago iria tentar se livrar da comida. Pelo menos o chefe estava comigo para saber o que causaria minha fatal convalescencia, menos mal.
Ao chegar os pratos (minto, o prato - o velhinho cozinha prato a prato separadamente, nao importa quantas pessoas estao esperando, e serve um de cada vez, faz muita diferenca isso) um prato imenso, colorido, com muito broto de feijao, legumes de um verde escandalizante fresco e tiras de carne macias entre um tipo de macarrao de arroz chato e curto, o aroma do tempero a base de soja, misso, oleos e folhas da Malasia com toques de cominho simplesmente nao deixam que se concentre em mais nada ao redor, o cominho lembrava terra fresca, um certo cheiro fresco dizia que o lugar era quente, tropical ate, e os sabores e a quantidade de comida diziam Bem-vindo, era como estar provando um prato na mesa de uma familia local, feito com tudo que havia disponivel na despensa, e o sabor residual na boca me lembravam as cores laranja e vermelha, nas casas, nos postes, nas roupas. Pode ser que tudo isso esteja errado, que eu chegue la um dia e tudo seja rosa, sei la, mas a experiencia eh completa - especialmente pelo drink de cha verde e lima-da-persia gelado que parecia apenas exaltar tudo aquilo, preparando meus sensos para mais uma garfada perfeita. Nao sobrou nem um so pedaco de nada no prato ou gole na garrafa.
Pagamos uma mixaria pela comida, mas agora o ambiente do restaurante havia mudado completamente em minha percepcao - o lugar nao era barato, sujo ou relaxado : era tipico.
A segunda parada era um restaurante chines, daqueles que ja estao por lah ha um bom tempo com a vitrine escrita naquelas letras indecifraveis e com a prosaica vitrine ostentando patos degolados, defumados e depenados (gracas a Deus) pendurados em ganchos ao sabor do tempo e o vento : em quaisquer outras condicoes nao entrava la nem a pau - mas coragem, sabemos o que queremos e queremos aventura ao palato.
Entramos, o restaurante era amplo por dentro e tinha aquele ar barato que soh os chineses sabem dar a um ambiente, paredes que pareciam folhas de eucatex, uma parede com placas de espelhos em uma tentativa nada esforcada em sofisticar o ambiente e tudo meio que com uma cara de anos 70 (quando provavelmente o lugar foi aberto) e sobretudo lotado, muito lotado. Restaurante cheio eh sempre um sinal bom, e o fato de ter muitos rostos ocidentais (basicamente kiwis, locais, em ternos e saltos altos em hora de almoco) me animou bastante, as mesas usadas e gastas davam um certo sinal de solidez e o caixa parecia uma escrivaninha montada na sala de uma casa em Pequim, daquelas cheias de penduricalhos, talismas e bibelos para afugentar os mau-espiritos (nao funciona, nao tive vontade de sair correndo em momento algum) e apesar do horario do rush, fomos prontamente atendidos e postos em uma mesa aos fundos - se existe uma coisa que os chineses prezam eh atendimento instantaneo, em segundos uma sorridente chinezinha chegou com cardapios, cumbucas, hachis e um garfo para mim, visto que eu era o elemento x da situacao (eu sei usar os pauzinhos com maestria, nada ficaria entre eu e minha comida, acreditem) e teve a maior paciencia do mundo enquanto tentavamos decifrar o que tinha uma foto para ilustrar.
Em minutos, as porcoes foram chegando - peito de pato defumado em um molho estilo teriaky, sabor puxado no mel e soja, cozido a perfeicao em apenas alguns minutos (lembrem-se, eles so fazem comida mediante ao pedido, se voce ja viu a extensao de um cardapio chines, sabe o que estou falando) e mais uns minutinhos, uma versao de nosso porco pururuca, cortado em fatias finas e largas que pareciam laminas, a casquinha crocante e a parte interna esbranquicada (olhando, nao era nada inspirador) pensei imediatamente no trabalho de fritar uma bola de pele e gordura que provavelmente teve de ser costurada, para manter a parte interna macia e firme para nao se esfacelar ao corte. Ao primeiro contato do porco com minha boca, ja podia sentir minhas arterias se entupindo, seria o primeiro caso de infarte fulminante por um unico pedaco de porco, mas ao sentir a textura, o gosto firme sem ser impregnante, nem tao insosso nem salgado ao ponto de sufocar, tive imediata paixao pelo pequeno prodigio : danen-se minhas arterias, afinal os chineses vivem mais de cem anos comendo porco e pato, minhas pobres arterias coronarias ocidentais teriam que entender isso.
O prato principal chegou - uma grande travessa oval coberta por macarrao oriental, de uma cor escurecida (o macarrao era levemente frito em uma wok) coberta por vegetais de cores vivas, salteados no oleo de gergelim, gengibre, misso, e o resto que nao sei fica pela magia. No topo de tudo isso, costelinha de porco cortada bem pequena, estilo honey-barbecue, macias, tenras, em um molho espesso e escuro.
Desta vez, o sabor era de tradicao, jantares entre familias e amigos com todos sentados em uma grande mesa de madeira escura, a receita passada por geracoes, os alimentos chegando em cestas de sisal e bambu e clima chuvoso - que estimula as pessoas a fazerem mini-banquetes, comerem juntas, entreter-se uns aos outros, o cha chines de jasmin servido dava a lembranca de mulheres, chinesas, usando seda e flores nos arranjos dos cabelos impecavelmente presos. A partir dai, o restaurante obscuro da viela ganhou outro ar - tradicional.
Ao terminarmos, fiquei na esperanca de um grupo de cozinheiro chineses me carregar ate o lado de fora e me colocar em um taxi - estava empanturrado - e a conta, novamente foi uma baba.
Entre algumas coisas que ja experimentei, peixe frito com barrigada e tudo (na Indonesia), me causou arrepios, mas novamente era um restaurante pequeno em uma vila de pescadores no qual o chef (o filho mais velho) servia e sentava-se na mesa conosco, fazendo com que os comensais comam queiram ou nao. Nao me arrependi, e cada vez que provei de novo aqui, Amed na Indonesia, aquela praia, as palmeiras, o calor do Sol voltam imediatamente a minha lembranca.
Sabor: um dos sentidos mais mnemonicos que existem.

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