Bem, como tentar resumir os ultimos meses em Auckland ?
Assim como me lembrava, Auckland preza o lifestyle de seus moradores que possuem grana, fazendo da cidade um enorme playground a ceu aberto que so admite socios, deixando um chef de segunda categoria como eu a olhar do lado de fora da cerquinha branca e imaginar apenas como seria dar uma voltinha no carrosel com as criancas mais abastadas - intocavel, tao perto e tao longe, o dinheiro esta aqui, mas fora do seu alcance. Algumas alegrias distantes de Queenstown, no entanto se tornaram possiveis, a vasta variedade de restaurantes e vinhos a metade do preco de Queenstown foram uma compensacao e tanto, desde que eu leve uma vida espartana em outros sentidos da metropole.
Meu flatmate, se digna a simplesmente tratar a casa como um dormitorio, um lugar aonde apenas se dorme e joga-se suas tralhas fora do alcance do amigo do alheio, mas mesmo assim paga as contas em dia. Eu sou mais a favor de construir um lar, sua casa deveria ser seu templo, sagrado, intocado, aonde depois de uma dificil jornada de trabalho voce deveria ter prazer em voltar e imaginar que estara seguro, aquecido e intocado dentro dos perimetros sagrados que custam a bagatela de NZ$ 150,00 por semana; um preco muito baixo a se pagar por tudo isso, talvez ?
Na agencia, tive uma semana otima e ate que produtiva (visto que chego imprestavel la, depois da cozinha) e ate minhas relacoes ja desgastadas com o Eduardo estao se reestabelecendo - apos tanto tempo juntos, passamos a nos tratar as alfinetadas mas o aumento dos negocios da agencia tem sido muito estimulante para ambos (bem, mais para ele, que eh socio da agencia) e sinto que meu prezado amigo tem um futuro brilhante pela frente, ao contrario da minha insensata busca por um porto seguro, infindavel. Na real, somos dois ossos duros de se roer, verdade seja dita, e duvido seriamente que alguem alem da Simone (a esposa dele) consiga conviver conosco sem entrar em colapso absoluto e nos matar de madrugada, enquanto dormimos - nao podemos reclamar um do outro - nos merecemos, ate que o inferno nos una novamente, amem.
Na Sky city percebi que poucas coisas efetivamente mudam, as pessoas sao condicionadas a fazer as mesmas coisas, nas mesmas horas e falar sobre as mesmas fofocas sobre pessoas diferentes, ainda assim, nao diminuiu meu interesse e entusiasmo de aprender mais e mais, mas conhecendo como as coisas funcionam por la, aprendi que para se chegar a algum lugar na cadeia alimentar precisa-se de montantes impressionantes de tempo - coisa que nao tenho disponivel no momento, tenho 30 anos e ainda tenho flatmate, uma poupanca de menos de uma entrada para uma casa, e uma capacidade de aprendizagem infinitamente menor do que ha dez anos atras.
Ricky, meu supervisor, aparentemente gostou muito de mim, como amigo, confidente e parceiro de balada, comecando a cada dia ocupar mais e mais espaco na minha vida, definiria mais como todo espaco que tenho disponivel. Comecamos a sair para comer em restaurantes, apreciar a boa comida e bebida, ir tomar um cafe na beira da Queen St. e observar os malucos da cidade zanzando de cima a baixo; ate ai, nenhuma estranheza. Mas com o passar das semanas, ele tem se tornado presenca constante em meu apartamento, em meus dias de folga, em qualquer tempo livre que eu tenha e isso passou a me incomodar um pouco - a namorada dele, alema, ja me incorporou muito amigavelmente e nao se incomoda de me carregar junto para cima e para baixo, mas percebeu que meu incomodo crescia a cada dia e comecou a dar toques nele (infelizmente, na minha presenca) e me tratam como uma crianca de dez anos sentado no banco traseiro do carro discutindo o que eu deveria ou nao fazer. Um desses dias, Ariane, a namorada dele, foi internada com um possivel problema neurologico e Ricky veio ate a minha casa me buscar (no meio do meu sono) para visita-la no hospital, eu estava extremamente cansado, mas claro que em uma hora dessas nao se pode dizer nao.
Chegamos ao hospital, ela parecia bem e estava com ressonancia magnetica marcada para o dia seguinte, fariam um check up total na manha seguinte e etc... ...apos deixar o hospital, seguimos para um restaurante asiatico (ele queria) para conseguir um jantar, meio a contragosto fui, cheguei as onze da noite em casa e tive que acordar as tres da manha para trabalhar - exausto, mas o que nao se faz por uma boa causa. Os dias se seguiram, e a cada tarde, depois do escritorio ele passa em casa para me acordar, e acreditem, a determinacao que ele tem nessa tarefa nao tem limites : Telefones (celular e fixo), interfone, buzina e berros fazem parte do repertorio criativo dele. Acordo, descabelado, de cuecas (percebo tarde demais antes de ir ate a sacada, toda a vizinhanca sabe que tipo de cuecas eu uso) e vou falar com o cara na esperanca que ele perceba que estava dormindo e que pretendo continuar nessa ardua tarefa. Nada funciona, sou carregado do mesmo jeito.
Anteontem, apos a cozinha, ele me fez ligar para o Eduardo (que nao deve ter ficado nada feliz) e quis que fosse com ele e Ariana jogar mini-golf em Albany, North Shore, e acabei ligando meio a contra-gosto mas com um certo prazer pois estava aos pandarecos e achei que um mini-golf requer menos atencao e responsabilidade que um escritorio lotado, precisava de um descanso, seja qual ele fosse.
Fomos para Albany, jogamos mini-golf, andamos um pouco pelos arredores e paramos em Takapuna para esperar que o trafego diminuisse enquanto tomavamos uma cerveja comendo alguma coisa. Cerveja tomada, barriga cheia de batatinhas, embora para casa, claro - e foi ai que o bicho pegou - ao chegar na cidade, pedi que me levassem para casa, nao aguentava mais as minhas costas, minhas pernas estavam bambas, minha mente imersa em uma escura nuvem de cansaco,sinceramente, nao aguentava mais discussoes de casal que sempre acabam em demonstracoes publicas e embaracosas de afeto. Sem me perguntar mais nada, Ricky vira o carro direcao oposta, me avisando que iriamos para o melhor restaurante indiano de Auckland, eu nao podia suportar aquilo, alem de nao estar com disposicao necessaria para aguentar o ritual estacionamento/mesa a escolher/entrada/principal e conversa sem muita animacao (falar do que ? nos vemos todos os dias) teria ainda que encarar o pesadelo maior que era comida indiana - simplesmente vai contra tudo que eu penso sobre prazer gastronomico, disse que nao, muito obrigado, nao queria comida, ainda menos indiana, Ariane tentou convence-lo a me levar, mas ele nao deu ouvidos, mais uma vez. Sentei na mesa do restaurante resignado, tentei fazer daquela uma experiencia positiva, mas o aroma forte de Curry no ar fazia meu estomago se contrair e enviar mensagens expressas ao meu cerebro de "mesmo sabendo que estou prestes a ser violentado, voce vai permitir isso ?" ou entao "Cerebro, amanha farei com que voce lamente por isso" ... Enfim, os pelos de meu braco se arrepiaram, a musica indiana a todo volume nao ajudaram e o bigode espesso do garcom de dezesseis anos no maximo me deram a impressao de estar numa comedia barata, simplesmente nao consegui relaxar, alem de estar emputecido de nao poder dormir.
Pedi um vinho para clarear as ideias - Gerwustraminer, citrico, perfumado, perfeito, o sabor era refrescante e o after-taste com acidez na medida certa, me senti ligeiramente melhor e ate ignorei mais uma discussao matrimonial sobre qual seria a melhor prioridade para uma vida melhor: casa ou carro ? E demais para um ser humano.
A comida foi escolhida pelo Ricky, ainda tentando me convencer que Indiano eh o must - a entrada foi uma Samosa gigante com uma massa que parecia de pastel, o cheiro forte de curry se espalhou pela mesa e comecei a sentir calafrios, rezei por um blackout, um Tsunami, qualquer coisa que me desse a chance de correr porta afora sem ofender meus anfitrioes. Primeira garfada, a massa sem muito sabor e encharcada de oleo com uma parte do recheio cremoso (meio seco) de curry e pedacos de batata parecia crescer na minha boca, quanto mais eu mastigava mais eu sentia que nao poderia engolir aquele troco, mandei uma talagada no vinho para empurrar e disfarcei minha cara de repudio enquanto Ricky contava suas estrelas, comentando sobre a iguaria, a preparacao,bla-bla... ...mais uma garfada e mais uma talagada de vinho e em seguida eu ja estava chamando o bigode de lava-rapido para me trazer mais uma taca, percebendo o desespero em meus olhos, fui prontamente atendido, o curry queimava minhas entranhas, meus olhos tentaram nao saltar para fora das orbitas, o fino suor escorria pela minha testa enquanto tentava disfarcar os arrepios pela minha espinha se estendendo por todo o corpo, meus testiculos rumaram norte particularmente quando uma pelota de curry puro veio parar em minha boca, cheguei a conclusao que todos os indianos podem praticar sexo anal numa boa, se aquilo nao machucasse ninguem ao ponto de correr para um proctologista, nada mais o faria.
Deixei metade no prato, retirado da minha frente quase que com um suspiro de alivio, (que durou apenas vinte segundos antes dos pratos principais chegarem),o main affair era composto de uma massa torrada, em folha, enrolada e com um recheio surpresa do qual nao estava euforico para descobrir - resolvi pedir mais uma taca de vinho por garantia, talvez nocauteando meu cerebro com alcool, todos os outros sentidos se fossem tambem. Ledo engano.
A tal massa, Ricky explicou que so poderia ser feita por especialistas, cruzava o prato de ponta a ponta saindo para os lados do prato, e vinha acompanhada de dois molhos em um potinho, um vermelho e um branco, e um outro potinho que parecia ser uma sopa de curry, o cheiro me intoxicava, pavor, panico, desespero - Deus, cade meu blackout ?
Bem, cara feliz, cortei a massa crocante e macia ao mesmo tempo, talvez nao fosse tao ruim assim - adivinha qual era o recheio ? CURRY E BATATA !! Mais uma talagada de vinho, apelei para os molhos, a sopa era curry puro e nao aliviou, os outros dois eram a base de coco ralado e vejam so : Curry again.
Engoli o maximo que pude da coisa, sem molho algum e deixei mais da metade do prato, agora alem de meio-bebado, exausto e mau-humorado agora estava prestes a uma indigestao secular. A cozinha indiana se caracteriza por excessos, redundancias e um certo apelo rustico que juntos remetem apenas a vulgaridade, na minha opiniao, nao importa quais sejam os ingredientes, tudo sera apagado pelo sabor do curry e desnecessariamente apimentado - nao importa se eh uma batata ou uma lagosta, o sabor do curry sempre ira imperar.
Terminamos nossa refeicao com um certo ar de constrangimento, para nao ter que quebrar o silencio da mesa com meu mau-humor, entornava vinho tentando nao pensar no que isso causaria somado aquela pimenta toda, e tentando nao voar na carotida do Ricky por mais uma vez nao ouvir o que eu quero e me impor o que ele acha que eh bom.
Tivemos uma breve conversa antes de pagar a conta, ele me contou como devemos experimentar de tudo e eu comentei que apesar de ter absoluta certeza de nao gostar de comida indiana, e comentar, mais uma vez ele nao me deu ouvidos.
Na manha seguinte, apos cinco horas de sono e retumbantes gases mortais de curry, cheguei ao trabalho as quatro da manha em um estado deploravel : barba por fazer, olheiras profundas e as promessas de vinganca de meu estomago se fazendo verdadeiras - duas idas de emergencia ao banheiro e toneis de agua nao fizeram muito efeito e acreditem, o curry nao saiu de melhor maneira que entrou, suor, lagrimas, calafrios, urros foram parte da trilha sonora ate as oito da manha - era extenuante, eu estava acabado.
Com a chegada do Verao, o movimento nos restaurantes aumentou 100% quase que de uma hora para outra, os pedidos para a cozinha triplicaram e eu continuei um so - corri, me desdobrei, gritei, minha jugular se expandia a cada novo problema, a cada falta de um forno livre, a cada batelada de caixas de oleo que chegavam em carregadeiras esperando para serem postas em seus lugares - sim - eu vi o inferno, e queimei nele, amaldicoei cada pedaco de samosa, cada hora de sono perdida, amaldicoei Ricky por tomar tanto meu tempo nas ultimas semanas. E como coisas ruins vem em tres, o meu dia de folga, marcado para ser o seguinte, foi mudado para um dia adiante em cima da hora - eu simplesmente odeio isso - diga-me por exemplo "Ricardo, semana que vem, na quinta, vamos enfiar um ferro em brasa no seu rabo e fazer voce guinchar como um porco, mas na Sexta voce esta de folga", claro que nao ficarei mais feliz com a noticia, mas vou apreciar a semana de antecedencia que me deram e marcar um proctologista.
Enfim, como se mais nada pudesse piorar, Ricky me mandou fatiar 30Kgs de pepino no Mandolin, e apos tanto cansaco, falta de sono e mau-estar, depois dos primeiros 20Kgs fica facil perder a concentracao; fatiei meu dedao direito mandando metade da minha unha para a assadeira - se ate agora eu estava puto, agora eu estava furioso - senti a veia da minha testa inchar, a dor lancinante no dedo se espalhava para a minha mao, descendo para o estomago e subindo, queria matar, estrangular, cortar, dilacerar, gritar, queria simplesmente homicidio - virei para o Ricky, que me olhava agora com uma expressao de terror, tentando minimizar a tragedia (inutilmente) ele me disse "agora voce perde o medo de usar o mandolin", apenas me virei e fui fumaceando pegar a caixa de primeiros socorros.
Apos conter o sangramento, ataduras e faixas em posicao, voltei ao trabalho - foram longas horas tentando ignorar a dor, meu corpo nao respondia mais, estava exausto, exilarado, cada assadeira carregada era extenuante,eu simplesmente nao podia mais.
O turno acabou, as duas da tarde, Ricky se vira e me pergunta "O que voce vai fazer agora ?".
E eu respondi "Trabalhar no escritorio e dormir" fulminando ele com meu olhar.
Apenas quero justificar, que nas ultimas duas semanas, ele tem me acordado, me impedido de dormir, me carregado para fazer tudo que ele quer fazer, sendo que eu acordo as tres da manha para trabalhar, e ele acorda as sete (alem do fato de ele fazer a tabela de horarios) e fiquei incomodado com essa intromissao, essa obssessao que ele desenvolveu - talvez seja o fato de ser o unico amigo ocidental que ele tem, somado que eu sou o ocidental diferente : menos frio que os Kiwis, mais amigavel que os europeus - Brasileiro. Mas mesmo tendo um blog, contando toda a minha vida para o mundo, tem uma coisa que eu privo, o meu espaco pessoal, meus limites que jamais devem ser cruzados e sou intolerante com excessos dessa natureza.
Hoje, estou de folga, uma atadura do tamanho do mundo no dedo - mas nem sinal do Ricky - talvez no Sabado, a gente va tomar uma cerveja.
Acho que ele entendeu - sou sozinho - por opcao, nao por disponibilidade.
Lembranças escolares
Há 14 anos
Um comentário:
Oi Ricardo! Sou Alicia da Argentina. Te escrevo porque li teu blog na internet procurando pessoas que estem morando na Nova Zelanda e que sejam latinos. Estou com muitas vontades de viajar para lá, tenho 30 anos e estuve lendo o que vc escreveu... gostaria muito de poder entrar em contato com vc para que me oriente um pouco em como é a vida nesse pais tao longe de nossa america latina. Me adicione a seu messager: aliciatuma@msn.com
Beijos, Alicia
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