O começo do fim.
Faltam 25 dias para o final desta jornada.
Lugares incríveis e inesperados como Dubrovinik, Croácia, Istambul na Turquia, Santorini e Rhodes na Grécia, e lugares incrivelmente terríveis como Port Said no Egito e Haifa em Israel que te fazem pensar que o Brasil não é afinal a última extremidade inferior do mundo, não me levem a mal, mas comparado com a França ou Itália nós somos aquele bairro barra-pesada que deve ser evitado a qualquer hora do dia ou noite.
Pessoas então, vêm e vão em igual velocidade aos portos, Cyril – o louco que de louco não tem nada, Damien de Camarões, Martin da República Tcheca (que na verdade é o único até agora a ter o perfil e mente criminosa de um chef), e muitos, muitos outros que me carregaram no colo durante estes dias de difícil adaptação para este atrapalhado cozinheiro que lhes escreve matando um litro de vinho para aplacar a dor moral de ter reclamado meses a fio por uma punição auto-inflicta, digamos assim.
Estranho até agora a mudança do perfil de meus companheiros de cozinha, perto de meus antigos chefs eles são garotinhas escoteiras cozinhando biscoitos para vender – meus antigos amigos de cozinha (e eu) estavam sempre a planejar pequenos furtos e outras atividades pouco aconselháveis além de beber, fumar, engolir e inalar qualquer substância controlada ou ilegal como meio de entretenimento além do inevitável assédio ao staff do salão, nem sempre bem-sucedido pois algumas garçonetes preferem fiapos de bambu embaixo da unha a beijar um chef; profusamente tatuados e com piercings em seus genitais (dos quais mostravam orgulhosamente a cada pedido – dentro da cozinha) éramos uma gangue de piratas, pilhávamos as bebidas restantes de cada festa do salão, furtávamos a cada chance itens menos accessíveis a nossos bolsos de cozinha para cozinharmos na casa de quem morasse mais perto, seja um pedaço de foie gras esquecido, um porterhouse steak, ou até um pote de trufas negras que ocasionalmente já havia sido pago pelo custo da comida do mês e passaria desapercebido, não importa, nossas noites eram puro prazer (sabemos dar prazer, trabalhamos na indústria do prazer), nossas happy hours começavam à uma da manhã e éramos uma matilha feroz após dez, doze, quatorze horas de trabalho defronte uma grelha à 300 graus Celsius, nossas mentes amolecidas e entorpecidas, tomávamos as cervejas para o staff e em seguida rumávamos para o Pub local onde as pessoas abriam nosso caminho até o balcão (“os chefs chegaram”) e depois de trabalhar tão duro, eu vou demandar sim que aquele bundão se levante ou se afaste do balcão para que possa tomar a minha birita. Eu era barra-pesada, apesar da cara de bom moço (não tenho culpa de ser loiro de olhos claros, baixinho e sem a menor cara de mau) eu não só acompanhava mas também era líder de pequenos esquemas vamos-beber-de-graça ou a-bebida-roubável-do-dia.
Aqui, todos são cordeirinhos bem-comportados, ninguém rouba nada mais caro que vegetais domésticos e prosaicos, ninguém afana aquele litro de vinho Madeira dando sopa na geladeira e ninguém canta a garçonete na cara larga. Onde fui parar ?
Outro dia, roubei pasta fresca do Toscana (após o serviço terminado do jantar) que deve ter um custo de US$ 0.50 e adicionei um pequeno luxo de trufas negras e óleo trufado que devem custar pelo menos uns US$ 50,00... ...os olhares de reprovação eram profundamente claros tanto quanto ignorados – porque trabalho como um escravo, não devo comer como um, se vocês dessem uma boa olhada na comida do Crew Mess, garanto que além de me perdoarem, pagariam um jantar para mim em um lugar bacana.
Foi uma refeição de um Rei.
Estou apenas exercendo a única e boa razão para se ser um chef/cozinheiro que é comer o que bem entender de graça. Tenho pouca clemência também por shitakes e portobellos, Prime Rib, Ossobuco (quase jogo a carne fora para roer o tutano delicioso), e tantas outras iguarias das quais não tenho acesso em minha prosaica vida no Brasil.
A verdade é – as pessoas aqui gostam do meu atrevimento, da minha desprovida falta de consciência ao roubar lindas e já douradas peças de foie gras para minha pasta com amêndoas e vinho branco ao creme, eles gostam de saber que ALGUÉM está fazendo justiça à merreca que nos pagam, alguém está recebendo o que merece.
Não que eles não peguem comida para seus currys e adobos (Indianos e Filipinos, bem dito) mas lhes falta a graça e a ambição de roubar os melhores ingredientes e transforma-los em algo sublime, Renata disse que a minha pasta é melhor que a do Satiricon, uma inflada e tanto no ego, devo acrescentar.
A barba por fazer (sempre), meus sapatos desgracentos, meu uniforme todo manchado e minha total falta de interesse pelo cardápio proposto me fizeram um tipo de caso perdido, ninguém pega mais no me pé e sempre quando posso, faço as coisas do meu jeito pois ter asiáticos tentando pensar por você, um porco ocidental e capitalista mercenário, sempre gera desgraça e atrasos pois a falta de praticidade e espontaneidade deles não bate com minha selvagem inclinação pelo improviso e flexibilidade na hora de preparar um prato, por flexibilidade entenda-se o Sistema “D”, saca MCGiver ? então, o sistema “D” trata exatamente disso, livrar o seu traseiro indecente de uma bela raquetada por falta de mise em place, por procedimentos duvidosos de cozimento de emergência tipo, um steak sendo mergulhado na fritadeira para o bem-passado ao mesmo tempo do médio na grelha (não faria jamais mas... dá uma idéia) ou a obtenção de itens sem autorização dos chefs de outras estações de trabalho, não importa, o sistema D vem de Débrouiller ou Demerdér, segundo meu ídolo Anthony Bourdain descreveu (se vocês lerem os livros dele, vão perceber que copio descaradamente o estilo dele minus a inteligência), enfim, o démerder sabe a hora de arregaçar as mangas e fazer aquela carne esquecida no fundo de uma geladeira virar um steak tartar de cem reais. Mesmo que jogando no robot Coupé, o que é um pecado pois deve ser na faca, mas na hora do aperto todos os pecados são perdoados para que possamos sair da cozinha no final da noite e beber de alegria, ao invés de matarmos a merda de nossas consciências com álcool por perder a batalha e entender porque Vatel se matou (na verdade, ele se matou porque sua encomenda de peixe nunca chegou) e se ele tivesse emprestado de alguém qualquer peixe ao invés de enfiar sua faca no estômago ? O sistema D teria poupado sua vida. Tudo sobre este trabalho é esperar pelo pior. Mise em place, é esperar pelo pior, usar sapatos com bico de aço é esperar pelo pior, aprender como usar um extintor é esperar pelo pior, assim como saber onde roubar cada item que poderá acabar do seu Mise durante o jantar... ...sempre estamos esperando pelo pior não importa, se somado ao navio a coisa piora – sabemos como prestar primeiros socorros, conduzir multidões nervosas, apagar incêndios entre outras medidas de evitar tragédias corriqueiras que podem, a qualquer momento, matar as mais de mil pessoas à bordo. Poseidon, alguém disse ?
O fim se aproxima, estou contabilizando meus podres, minhas conquistas, meus portos, mas ainda sim não têm sido fácil, na real, sempre lembro daquela cena de Kill Bill, onde Lucy Lyu pergunta à Uma Thurman – “ Você achou que ia ser fácil ?” e ela responde na maior sinceridade , “ Na verdade, achei...” fazendo uma cara de quem vai levar uns minutos a mais no trabalho enquanto decepa, tritura e decapta ninjas às centenas.
As últimas semanas foram de discussão, trabalho, ressacas incríveis, poucos portos (já vi todos e não posso ser incomodado), muitas horas de miséria absoluta, poucos momentos de intenso e agonizante prazer, provar Dolmades na Grécia, uma pasta Marinara à beira-mar na Itália, um legítimo Kebab em Istambul, Tâmaras frescas no mercado de rua do Egito, entre várias e várias cervejas locais para regar tudo... ...fazem quase tudo isso valer a pena, fora as milhares de restrições sempre em meu caminho.
Eu sempre aprendo tudo da maneira mais difícil, eu sei.
Mas se existe uma maneira mais fácil, qual seria a graça de se chegar ao fim ?
Lembranças escolares
Há 14 anos
3 comentários:
É meu caro amigo Rick, da para você escrever um livro, é uma experiência única, que só você pode passar, não existem fotografias que descrevam tudo que passou, esta tudo somente dentro da sua mente e do seu coração, guarde cada momento com carinho, tanto os bons quanto os não tão bons, mas com carinho de que só você viveu, e um dia verás que eles tiveram um motivo de existir. Desejo muita saúde, muita paz, que o resto você vai conquistar com facilidade. Pense que este contrato foi um divisor de águas e muitas conquistas virão. Um super abraço, e lembre-se que tem casa de amigos em Barcelona, caso queira descansar um pouco por aí.
(exclui o meu comentário anterior porque encontrei um erro gramatical terrivel, beijos a todos)
NNNOOOSSSAAAA o Barba Ruiva só na pilhagem, hahahahahahah...... Cuidado para não ter que andar na prancha heimmmmm...Abraçoss....
se cuida....
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