segunda-feira, junho 27, 2011

Lembranças sangrentas.

Hoje, estou um misto de nostálgico/triste/aliviado.



Há quase quatro meses definitivamente longe das cozinhas profissinionais.

Este fim-de-semana me lembrou disso com todas as letras, pontos, marcadores e dificuldades que a profissão te impõe (ou cobra de você) - minha tarefa este fim de semana era a mais simples possível : cozinhar spaguetti para 12 pessoas, spaguetti levemente picante ao Vôngole com kilos de alho e salsinha aos litros de azeite extra-virgem. Um chipanzé bêbado pode realizar a tarefa, se bem treinado.



Minha noitada de Sexta não foi diferente das muitas que tive ao longo da carreira, cheguei em casa às seis da manhã e sem dormir, fui direto ao batente (que ficava a 200 kms de estrada, vá lá), meu senso de responsabilidade continua o mesmo, em cinco minutos estava no portão com minhas facas, uniforme impecável, etc... ...mas o resto mudou muito ao longo dos anos.



Minhas ressacas, agora, são muito mais intensas e incapacitantes que há dez anos atrás, o que significa que estava saindo com a largada queimada e que o dia seria difícil. O fato de chegarmos ao local antes dos primeiros pios evocarem dos galinheiros mais um atraso de três horas e meia para servimos a comida também não ajudaram. O fogão da cozinha que iria usar estar sem gás também não ajudou pois carregar um botijão de mais de 200kgs em duas pessoas por uma distância de 30 metros até o carro é uma tarefa que também não desempenho com a mesma desenvoltura de sete anos atrás pelo menos.

Suando aos cântaros, pus a água para ferver pouco antes da hora combinada para servir.



O spaguetti cozido à perfeição, vamos fazer a tal da pasta, a cozinha agora começava a esquentar, meu estômago dando voltas e voltas em órbita de nada (completamente vazio a não ser pelo álcool residual da noite anterior), as cozinheiras me mandaram menos da metade do vinho branco que eu precisava e eu tinha um terço do alho que pretendia usar, o local em que estava não era usado há seis meses e não havia um único ingrediente a vista - estava fazendo o melhor que podia para não deixar a pasta ruim, aceitável e suave era um bom patamar (enfim, não foder a receita) e na hora de adicionar a pimenta malagueta, calculei três mini-malaguetinhas para 2kgs de macarrão, não iriam matar ninguém. Sem calcular que : a capsicina da pimenta se dissolve em óleo (no caso o litro de azeite no qual refoguei), o quase um kilo de vôngole fica levemente apimentado/elétrico quando cozido - somados, iriam provocar uma hecatombe mexicana, tive que servir quase com um aviso de biohazard. Curiosamente, recebi elogios de uma platéia afecionada por pimenta ou, muito educada para me mandar passar a pasta em minhas hemorróidas, o que considero um castigo apropriado para um cozinheiro que fode um prato simples como aquele. Meu principal objetivo durante todo o dia, na verdade, era não vomitar na panela enquanto servia kilos de frutos do mar fumegantes aos convidados. Tive a impressão de que não seria de bom tom.



Lembro da época do Tatler, eu era o cozinheiro mais ágil, mais empolgado e mais confiável que o (pouco) dinheiro poderia pagar - no Cassino eu era o chef em ascenção de que todos ouviam falar, eu estava no fundo e no topo do mundo ao mesmo tempo.

Morava em um apartamento decente em Auckland CBD, conseguia pagar minhas contas e minha bebida (e bebia, muito) mas estava constantemente irado, ver os carros dos clientes me deixava irado, olhar as roupas e relógios deles me deixavam irado, passar todos os dias na frente da Breitiling de Auckland me deixava puto. Na verdade, o que me deixava puto não era querer um relógio daqueles, nunca quis e duvido muito que queira ainda comprar um, mas o fato de existirem pessoas que usam um carro no pulso enquanto eu não tinha um(e nem teria, ao que tudo indicava). Os trinta anos vão chegando, e com eles a resolução de que se portar como um imbecil de 23 não era mais o indicado para progredir na vida - e você começa a ver a vida com mais responsabilidade, medo e baixas expectativas fora o fato de seus joelhos não estarem mais tão rápidos e responsivos à 14 horas de pé em frente à fornos em 300°C , a realidade é que se eu disser que sinto falta disso, eu estou mentindo. Amo cozinhar, amo tratar meus ingredientes com respeito e carinho, amo odiar vegetarianos, mas dizer que eu gostaria de enfrentar 14 horas por dias de stress, calor sufocante e momentos de desespero que tendem a durar cada vez mais dentro de uma cozinha abarrotada em meio à comandas intermináveis, mâitres D' histéricos e head Chefs sádicos... ...acho que não, obrigado.



Lembro das pessoas com quem trabalhei - Mark Beeby provavelmente será (e é) o Head Chef mais lembrado por mim, pelas insanidades e crimes cometidos com e pela comida, pela personalidade transloucada com que tratava os restaurantes e cozinheiros e por ter sido um mestre em custos abaixo dos 20% sem sacrificar tanto a comida (que não era nem de longe Fine Dining, mas uma refeição honesta se o Tatler cobrasse uns 30% a menos no menu). Esse é o homem que explodiu uma batata assada na minha cara, explodiu duas recargas de sifão em uma frigideira logo atrás de nós no passe só pela diversão, distribua tapas e apertões na bundas em xadrez da equipe e acabou como um grande amigo (ainda que odiado pelo resto da equipe).



Steven não-lembro-o-sobrenome me ensinou muito, porém não sobre cozinha (eu era melhor que ele) mas sobre a vida dura e competitiva que uma cozinha poderia ter, dedurando, sabotando, provocando e fazendo de minha vida um total e completo inferno - me fez perceber também, o valor de ser honesto e leal até com quem te ferra. Acabou despedido por ser desleal à mim (e por quase fazer o chef perder seu assistente, no caso, eu) mas morreu através da própria boca, não pela minha, tentando fazer com que fosse despedido e meu visto de trabalho revogado. Acabou como head chef de uma pizzaria (fiquei surpreso) e depois foi dar umas bandas pela Austrália e nunca mais ouvi falar dele, tomamos algumas cervejas juntos depois que ele foi mandado embora, ele confessou todas as merdas em que me metia mas disse que sinceramente respeitava meu trabalho e que me via como uma ameaça ao cargo de Sous-chef. Nenhum dos dois conseguiu o cargo, apesar de eu ter conseguido mais privilégios que o próprio cargo oferecia por ser a cadelinha preferida do chef. Não que tenha orgulho disso, mas ganhei muitas folgas de fim de semana.



Craig Saunders e Fran Nolan, respectivamente, me ensinaram o valor da lealdade mas na mão contrária, olhavam por mim, me ensinavam tudo de tudo : manejo de faca, técnicas, pontos de cozimento, receitas pessoais, como trazer de volta à vida receitas assassinadas pela falta de experiência, tudo. Craig me ensinou a NUNCA, ou ao menos no mínimo possível, entrar em pânico e que um cozinheiro pode e deve se orgulhar de ser inteligente.

Fran, na verdade, foi um dos primeiros a me ensinar o que é uma paixão, sincera e incomprometida pela comida e pelo que ela poderia proporcionar, pelo estilo de vida dos chefs, a ter a habilidade de transformar ingredientes ordinários em pratos extraordinários e por nunca desvalorizar nenhum ingrediente - uma cenoura ou foie gras, ambos tinham seu valor e deveriam ser o máximo que poderiam ser (não que ele ficasse igualmente empolgado ao ter que utilizá-los em cada caso). Ele foi o único a me dizer "é bom ter você de volta" quando voltei de dois meses de férias no Brasil, reconfortante.



Fabricio, argentino, me ensinou muito, muito... ...nem sei por onde começar, talvez a não levar tudo tão a sério, como cozinhar pode e deve ser uma equação, uma ciência, e não apenas arte como alguns dizem, e me ensinou principalmente a ter orgulho de usar meu uniforme, andar de cabeça erguida e nunca, nunca levar mais desaforo para casa do que alguém em minha posição deveria. Me ensinou, na verdade a ser um pirata da cozinha, arruaceiro, indestrutível, mas uma máquina na hora de trabalhar - ser organizado, limpo e nunca esquecer detalhes. Ele me ensinou a me livrar de uma relação indesejada no trabalho de uma maneira fácil e rápida - um simples boquete no banheiro feminino e a gerente nunca mais iria poder se dar ao trabalho de uma vingança, caso eu não correspondesse às expectativas amorosas dela. Quanta sabedoria.



Mike Novak, o lavador de pratos da República TCheca, constantemente chapado ou bêbado (ou ambos) me ensinou algumas coisas - nenhuma delas propositadamente, Deus o poupe de fazer alguma coisa didática mas principalmente a nunca copiar ou tolerar alguém que fuma um baseado cinco minutos antes do serviço do jantar, a ser o traste mais amado pela cozinha pela consistência de caráter e pela obtenção/apropriação não-autorizada de ingredientes em momentos de necessidade e considerar a equipe a ponto de aparecer para trabalhar no dia da morte de seu pai, ou continuar a imergir a mão em uma pia de água morna/quente durante horas a fio após mergulhar mais de 50% da mão na fritadeira à 250°C - após isso, qual membro da equipe iria atrever-se a não aparecer por causa de uma gripe ?



John Jones me ensinou muito do que não se deve fazer ao abrir um negócio, à dividir melhor as relações dentro do trabalho e tudo mais que pode em uma didática reversa - fazendo tudo isso errado.

Se o seu funcionário é seu amigo, a não ser que ele não queira receber dinheiro de você (acredite, eu constantemente não quero e não cobro o favor depois, nem conto com isso) pague-o, nem um centavo a mais ou a menos, mas pague. Gosto muito dele, um cara muito amigo e afetuoso, tanto que ameaçar vender o carro dele para receber meu dinheiro relativo às ferias e horas extras de sete meses de trabalho ininterruptos (sim, sem dias de folga), não afetou nossa amizade. Hoje, o Café que ele abriu, é um sucesso em Queenstown (PJ's Café) e lucra profusamente com Cafés da Manhã e Fish and Chips para os backpackers da região, as vezes eu ligo para ele para saber das novas. A esposa dele me odeia, como se eu pudesse me culpar por um/qualquer irlandês beber demais.



Meus quatro subordinados na Skycity, me ensinaram a liderar sendo regular e constantemente quatro idiotas irresponsáveis que jogaram futuros brilhantes na lata de lixo abandonando a escola por um estágio de dois anos pelo Cassino, sendo relapsos e infantis no trabalho e por, inocentemente, sempre serem surpreendidos por mim nas piores horas possíveis. Igor e Sean (a.k.a. Mary Kate e Ashley), Vanessa e Jake (o adorável vagabundo) eram minha responsabilidade de certa forma, quatro crianças que curiosamente, como cães vira-latas, mesmo após serem cobertos por pontapés, sempre vinham abanando as caudas quando me viam. Gostaria de saber se eles se tornaram grandes Chefs, cozinheiros ou seja lá o que resolveram fazer da vida.



Um grande Chef brasileiro, me ensinou que ações valem mais do que palavras e decência se mede geralmente pelas primeiras - mostrou-me isso explorando jovens chefs, pagando tão mal que os únicos que podem trabalhar para ele, são os que justamente não precisam trabalhar; negando a oportunidade a quem realmente poderia beneficiar-se desse privilégio. Não que a equipe mais experiente dele tenha a mesma sorte, são muito bem-pagos e amam seu chef, nada disso, aliás admiro muito o trabalho dele. Mas não tolero a forma de excluir jovens talentosos, cheios de gás e esperanças por não poderem se manter em uma cidade como São Paulo por "brincar de trabalhar". Eu passei por isso, e logo em seguida, no próximo emprego, estava ganhando o triplo do que ele pagava. Valeu a pena para conhecer quem é quem na indústria, mas não sei se faria de novo pelas mesmas condições.



Pascal Valero me ensinou que um Chef pode fazer dinheiro sem vender a sua alma, que pode-se vender comida boa a preços razoáveis e que principalmente, um Chef pode ter uma aposentadoria decente sem ter que morrer acorrentado pelo pé nos fogões, sem desaparecer de sua cozinha. O homem é um gênio, em muitos sentidos, por não complicar a vida de sua equipe, por se fazer respeitar e se dar a esse respeito e mostrar que não basta saber cozinhar apenas - um Chef tem que administrar TODOS os aspectos de um grande restaurante, saber o que está nas geladeiras sem abrir as portas, gerenciar 50 cozinheiros ou mais, saber quais precisam ser agradados na hora certa e quais merecem uma gelada na hora certa. Trabalharia para ele até em uma barraquinha de praia fosse preciso, ele sabe que aprender com ele é uma coisa preciosa e não faz segredo disso, aliás, ele dificilmente irá enrolar você, doa a quem doer.



Aprendi demais com um jovem chef, tinha uma admiração quase lunática pelo trabalho dele - porém vi a ambição culinária transformá-lo em um maníaco, custos estratosféricos margeando o trabalho, a pressão sobre ele se transferindo para a equipe, o sonho da cozinha perfeita dando lugar à um crescente pesadelo que consumiu nossos sonhos de utopia, vi as próprias expectativas dele serem devoradas pelo monstro que se instaurou naquele lugar, me senti ressentido por receber a frustração dele em doses cavalares e por não corresponder às expectativas dele me fazendo sentir impotente e inútil - na verdade eu queria ter feito mais por ele do que desejava para mim. Acabei pedindo demissão imediata, coisa que nunca havia feito na vida, mas na hora, no momento, tudo parecia muito... ..dolorido. E ainda é.

Mas o talento e a vontade férrea estão lá, e tenho certeza que vou ouvir o nome dele muito ainda, torço por isso e não acho que ele mereça menos que isso.



Com meu atual acólito e parceiro no crime, aprendi a ter responsabilidade pelo negócio e pelo emprego de outras pessoas até - poucas pessoas depositaram (depositam) tanta confiança em mim quanto ele, e por isso ele terá minha lealdade... ...mas na verdade, ambos gostamos de cozinha, hoje em dia, contanto que não precisemos estar lá o tempo todo. Ambos estamos afastados da cozinha, ambos estamos com saudades da loucura, da pressão, da equipe.



Mas o que realmente me dá saudades, é sentar em um bar após a batalha diária, pedir uma cerveja com seus colegas e beber sem culpa, com o sentimento do dever cumprido - essa sensação, não é negociável - voc~e sabe quando você merece, quando nada saiu errado, quando todos estão felizes (e cansados), quando todos irão para casa com um leve sorriso no rosto. Na verdade, quando escrevia no blog antigamente, cheguei a atacar pessoas que não mereciam a minha raiva não-direcionada, as pessoas me acham mais comportado em geral, mas ainda odeio um monte de coisas, até porque, eu estava genuinamente PUTO, com a vida, com a falta de melhores perspectivas, com a perspectiva certa de que as coisas estavam ruins e tendiam ficar piores. Sabotei muitos empregos promissores pela negra percepção de anos e anos a fio trabalhando assim, para me tornar um homém de meia idade decrépito, melancólico e com nenhuma chance de aceder na indústria pelas péssimas condições que estes anos de trabalho me deixariam. Minha mente já não lembra de tudo em detalhes mínimos, não responde mais à velocidade dos pedidos e eu sou muito mais tenso e bravo dentro da cozinha do que jamais fui - a paciência se esgota, e para quem já tinha pouca, não é nada bom.



Mas, eu continuo. Amando muito tudo isso, contanto que tudo isso não venha em uma caixa de papelão (e com gosto de papelão). Quem sabe eu ainda não volte à cozinhar

3 comentários:

O Estranho Mundo do Patto disse...

Rick é muito bom te ver blogando novamente, textos e desabafos com muita sinseridade e clareza de uma pessoa do bem tendo de matar 10 leões a cada dia !

Anônimo disse...

Realmente espero que você volte a cozinhar. Não por mim, que nunca provei sua comida e dificilmente provarei, mas por você. Pela paixão como fala do assunto, imagino que seus olhos brilhem diante de uma panela... Desejo que aconteça o melhor!

Anônimo disse...
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