domingo, março 27, 2005

A vida de Chef.

Desde minha volta, evitei tocar no assunto e talvez mistificar o que tenho aprendido e o que tenho a aprender talvez ate para nao criar expectativas grandes em relacao ao que faco, apesar de gostar do que faco - provocar reacao instantanea nas pessoas ao verem um prato bem servido e bem decorado - existe a responsabilidade que pesa sobre voce desde um jantar para 60 pessoas ate um jantar para 10 para amigos (do qual senti pesar muito mais a responsabilidade por medo de decepcionar as pessoas que voce gosta) mas por ora, vou tentar focar a trajetoria que me levou a fazer o que faco.
Ao conseguir o emprego de lavador de pratos, observei com inveja e admiracao os chefs se movendo graciosamente dentro da cozinha de dentro de meu avental de PVC enquanto esfregava panelas, frigideiras fervendo e tentando saber a razao de tanta agressividade no trato de utensilios de cozinha ao serem atirados para dentro da pia a me encharcar os ossos de detergente, gordura e pedacos incidentais de comida que grudavam em meu rosto e cabelo. Minha primeira grande atracao foi pelas sobremesas, Yanick, um chef franco-canadense fazia pequenas torres de chocolate marmorizadas com apenas umas tiras de plastico e clips de papel, para mim foi a primeira vez que quis realmente tentar preparar alguma coisa, as sobremesas bem-decoradas e guarnecidas pareciam muito melhores que a comida que saia do fogao na hora do almoco, tinham um que de grand-patisserie e uma dignidade muito maior do que os ovos e Hash Browns empilhados em pratos de maneira quase desconstrutivista ou uma versao piorada de uma pintura de Picasso, olhos desgovernados e fora de centro ao redor de um nariz horizontal, um total horror aos meus olhos. Eu sabia o que queria e o que queria nao era fast-food, pretencioso eu sempre fui.
As pessoas que porventura acabam em uma cozinha, sao, de longe, anormais em relacao aquelas com as quais voce trabalha no escritorio, no forum, na loja; sao desajustados que estao sempre em posicao de fuga, seja da familia, da vida da realidade dos dias nove as cinco das pessoas normais - a vida de chef eh mais atribulada mas deixa exatamente os horarios certos e preferidos para fazer o que mais gostam : beber e fumar maconha.
Yanick por si soh ja era uma epifane da profissao : sempre de barba por fazer, usuario de cocaina inverterado estava sempre com a cara de quem nao dormiu a noite toda e os longos cabelos desgrenhados sempre entafuiados para dentro do chapeu de chef, mas com sabedoria de quem ja trabalhou em muitas cozinhas e sabia que nao havia nada de novo que alguem pudesse jogar em sua cara, nao dava a menor ao que acontecia ao redor - ele era a lei.
Vendo que eu dava conta da lavagem e ficava procurando o que fazer, ele me introduziu a praca das saladas, aonde me ensinava devagarinho os pratos frios com aquele ar de "voce nao sabe o que te espera".
Eu realmente nao fazia ideia.
Apos tres semanas eu ja dominava as saladas e mezze plates e ja fazia uma humilde entrada no mundo das sobremesas, aprendia a fazer as guarnicoes e enfeites como uma crianca na aula de educacao artistica fazendo um cinzeiro de argila. Yanick em hipotese alguma era a companhia que desejava para circular por ai, era rude (o lado frances) neurotico e drogado, mas dentro da cozinha se tornou a pessoa certa para se estar e em pouco tempo, ja havia me dado uma jaqueta de cozinha (meu primeiro uniforme) um gorro e muita coisa para fazer e apesar de seu jeito desleixado tinha uma disciplina nazista em relacao a limpeza, arranjos e trato com a comida.
Ao final de tres semanas, ele pediu demissao, e eu vi a chance ali, uma pessoa a menos na cozinha, uma pessoa a mais a contratar.
Pedi o emprego numa quarta-feira e na sexta estava de contrato na mao e com a promessa de treinamento para a posicao de Larder Chef por um ano (a qual se revelou um treinamento totalmente na pratica, estilo militar) e quando comecei a trabalhar noites (jantar eh o objetivo de todos os aprendizes, eh onde tudo acontece) comecei a ver mais e mais a fauna culinaria.
Andrew, chef ingles, havia sido contratado ha uma semana e todos estavam contentes com o seu trabalho ate a noite em que ele saiu para fumar um cigarro e nunca mais voltou - me deu bem uma ideia do tipo de relacao que esses trabalhadores tinham com seus empregos.
Mike, kitchenhand que trabalhava ha meses antes de mim, nao fazia a menor ideia da onde vinha uma sobremesa, uma salada, e vivia chapado de maconha e talvez por isso, foi declarado nao-elegivel ao aprendizado da cozinha limitando-se a lavador de pratos; em varias ocasioes chegava para trabalhar apos fumar um baseado nos fundos do restaurante e ficava segurando as manoplas da lavadora de pratos industrial como se estivesse em uma moto, imitava inclusive o ronco da "Harley-Davidson" imaginaria, que inveja nao saber o tempo todo o que se passa ao redor. Em Queenstown, cidade turistica, tive mais contato com a industria da hospitalidade e pude observar o staff de temporada :
-Pessoas que estao fugindo de suas realidades;
-Beberroes e notivagos em geral;
-70% dos trabalhadores usam regularmente algum tipo de droga;
-Pessoas que em geral, tem horror a estudo;
-Gente que, em vinte anos, provavelmente estara fazendo as mesmas coisas, vivendo da mesma maneira em qualquer pais que nao seja o deles.

Mark Beeby.
Ao trabalhar noites, conheci o head-chef do restaurante, Mark Beeby trabalhou em Queenstown por vinte anos e eh conhecido por ser um "Cowboy" - termo designado no meio para Chefs que fazem servico "matado", daqueles que botam um steak na fritadeira ou no microondas para servir mais rapido (ofensa grave no meio) e que gerenciando pessoas nao tem a menor ideia dos limites entre ofensa pessoal e profissionalismo. Por ser um dos unicos Chefs qualificados e com certificado, sempre conseguiu trabalho apesar de ser esta a primeira experiencia como head-chef eh brilhante para trabalhar com custos e lucros da cozinha. Seus menus sao pessimos e a grande parte da industria o odeia.
No comeco temia a ira dele durante as horas de maior movimento, os berros, os xingamentos eram simplesmente insuportaveis e com o tempo, quanto mais convivi com ele, mais aprendi a ignorar seus acintes e achaques a partir do momento que o chamei para a briga (pra fora, agora!!) ele desenvolveu um respeito inesperado por mim e ate hoje o homem me adora, nao consigo entender ainda a razao ate porque, ate hoje, eu nao o trato diferente do que costumava no comeco. Se por um lado aprendi muito do que fazer com ele, aprendi tambem muito do que NAO fazer.

O trabalho no Tatler comecava a me cansar, principalmente por nao poder tocar no fogao, e tratei de aprender a fazer as sobremesas para ter acesso a essa meca sagrada da cozinha - a area "quente" onde estao fogao, fornos e fritadeiras, aonde a magica acontece e durante uns raros segundos durante o almoco, entre a troca de chefs, fui permitido cozinhar por alguns minutos diarios as refeicoes, prazer este, muito maior do dirigir um carro pela primeira vez, que a primeira trucada, que o primeiro dia de faculdade - eu comandava ainda que apenas por raros minutos mas estava lah, esperando a minha chance.

Apesar disso ser o maximo que consegui em sete meses, mas a minha sorte estava por mudar.

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